Seja bem-vindo/a

Obrigado por visitar meu blog. Comente, sugira, participe. Este é um espaço aberto

sábado, 11 de agosto de 2012

Sonetos sobre sonetos

Soneto é uma composição poética de 14 versos, dispostos ou em dois quartetos e dois tercetos (soneto italiano ou petrarquiano, o mais cultivado) ou em três quartetos e um dístico (soneto inglês).


Soneto por encomenda
(Lope de Vega,(poeta espanhol nascido no século XVII)


Un soneto me manda hacer Violante,                   Um soneto manda-me fazer Violante
que en mi vida me he visto en tal aprieto;             e em minha nunca me vi em tal  aperto
catorce versos dicen que es soneto:                     catorze versos dizem que é soneto:
burla burlando van los tres delante.                      brinca, brincando vão os tres adiante.

Yo pensé que no hallara consonante                     Pensei que não acharia consoante
y estoy a la mitad de otro cuarteto;                       e já estou na metade de outro quarteto
mas si me veo en el primer terceto                       se me vejo no primeiro terceto
no hay cosa en los cuartetos que me espante.       não há coisa nos quartetos que espante.

Por el primer terceto voy entrando                       No primeiro terceto vou entrando
y parece que entré con pie derecho,                     e parece que entro com pé direito
pues fin con este verso le voy dando.                    pois fim com esse verso lhe vou dando

Ya estoy en el segundo, y aún sospecho               Já estou no segundo e ainda suspeito
que voy los trece versos acabando;                     que vou os treze versos acabando;
contad si son catorce, y está hecho.                     Contai se são catorze, e já está feito.     



Soneto
(Gregório de Matos , poeta satírico brasileiro,1623-1696)

Um soneto começo em vosso gabo;
Contemos esta regra por primeira,
Já lá vão duas, e esta é a terceira,
Já este quartetinho está no cabo.

Na quinta torce agora a porca o rabo:
A sexta vá também desta maneira,
na sétima entro já com grã canseira,
E saio dos quartetos muito brabo.

Agora nos tercetos que direi?
Direi, que vós, Senhor, a mim me honrais,

Gabando-vos a vós, e eu fico um Rei.

Nesta vida um soneto já ditei,
Se desta agora escapo, nunca mais;
Louvado seja Deus, que o acabei.



SONETO 233 SONETADO
(Glauco Mattoso, poeta brasileiro)

Já li Lope de Vega e li Gregório,
pois ambos sonetaram do soneto,
seara na qual minha foice meto,
tentando fazer algo meritório.

Não quero usar o mesmo palavrório,
mas pilho-me, no meio do quarteto,
montando a anatomia do esqueleto.
No oitavo verso, o alívio é provisório.

Contagem regressiva: faltam cinco.
Mais quatro, e fico livre do problema.
Agora faltam três... Deus, dai-me afinco!

Com dois acabo a porra do poema.
Caralho! Só mais um! Até já brinco!
Gozei! Matei a pau! Que puta tema!

                

O pote de ouro


Pote de ouro


           Naquela calorenta tarde de novembro João Quirino fazia um novo cercado para o chiqueiro que seus porcos haviam pouco a pouco destruido quando chafurdavam. O enxadão batia no chão e retirava pedaços de terra enlameados. A cada tacada a vala se afundava e se alongava  um pouco mais. Seu sobrinho Onofre, conhecido como Norfo, o ajudava. O local era a baixada do açude e a água escorria barrenta e pegajosa .  João afundava o enxadão e Norfo retirava o excesso com uma pá enferrujada. O calor sufocava.  A cada movimento do enxadão, pingos de suor espirravam no chão e se misturavam com o barro.
       - Tio - disse Norfo - "tô" morrendo de calor.
       - Calma, menino, só mais uma hora e deixamos o resto para amanhã - respondeu o tio.
       - "Tá bão" - assentiu o menino e com o pé apertou a pá na terra.
       João Quirino continuava cavando e em dado momento percebeu que o enxadão bateu em alguma coisa mais dura e ao forçá-lo ouviu barulho de algo se quebrando na terra. Pediu a pá a Norfo, afastou um pouco a terra e percebeu alguns cacos. Examinou-os com as mãos, pensativo.
        - Olha tio, tem mais aqui - disse o sobrinho recolhendo da terra mais alguns pedaços.
        - Deixa eu ver - emendou João Quirino, tomando os cacos e examinando-os. Tem alguma coisa escrita aqui.....deixa ver.......humm......"Cer.....". O que seria isso?
        - Olhe, tio, achei mais alguns - mostrou o menino com mais alguns cacos nas mãos.
        João Quirino tomou-os e tentou juntar os pedaços. Depois de alguns minutos percebeu que tres dos cacos juntos formavam o fundo de uma espécie de vasilha, parecida com uma jarra  e dava para ver nitidamente a inscrição "Cerâmica Lisboeta".
        - Cerâmica lisboeta........hummmm.........o que será isso? - indagou com seu botões examinando o conjunto formado. Norfo - ordenou - pegue aquele bornal ali e coloque isso dentro.
        Depois que encerraram o dia João Quirino foi à cidade, situada a uns cinco quilômetros dali e levou o bornal com os cacos para que Zé Inácio, um dos moradores mais antigos da cidade o examinasse. O menino foi com ele e João lhe deu alguns trocados para comprar uns doces na venda do Modestinho.
        João Quirino chegou à cidade, amarrou o cavalo no varão do bar do Fredão e entrou. Pediu uma pinga, colocou o bornal no balcão e  passou a mão por dentro da alça.
        Enquanto tomava a pinga alguns curiosos se aproximaram.
        - O que tem aí no "inborná", João?
        - Nada - respondeu ele - só uns cacos.
        - Cacos? De telha? De tijolo? E o que vai fazer com isso? Para onde está levando ?
        - Ara, pessoal, é assunto meu. Até logo. E saiu, já meio irritado.
        - Tem coisa aí - resmungou um.
        - Se tem - concordou outro.  E pela janela foram espreitar o trajeto do homem, que desceu a Rua Direita e virou na esquina da rua do cemitério.
        Depois da esquina João Quirino deu alguns passos, olhou para trás certificando-se que os curiosos não o seguiam e chegou à casa do velho.
         Zé Inácio era oficial de cartório da comarca e historiador nas horas vagas. Era considerado bem informado por ser a única  pessoa da cidade que assinava o "Jornal do Rio de Janeiro", que chegava ali com pelo menos uma semana de atraso. Frequentemente era chamado para explicar acontecimentos políticos, economicos,etc., quando também acrescentava alguns pormenores por conta própria. Nessa época Getulio Vargas governava .
                                                                                                                               Bateu na porta e uma voz anasalada gritou lá dentro:
        - Quem é? E o que quer? Estou ocupado
        - 'tarde, seu Zé. É o João Quirino. Trouxe uns cacos para o senhor dar uma olhada.
        -Cacos?? E que tenho eu a ver com isso? Porque veio até aqui? - respondeu o velho lá de dentro, sem abrir a porta.
        -Isso estava enterrado - explicou João Quirino.
        -Enterrado? Onde? - inquiriu o velho com um pouco de curiosidade.
        - No chiqueiro e......
         - No chiqueiro? - interrompeu o velho, irritado - e vem trazer essas porcarias aqui? Vá embora, homem! Tenho mais o que fazer.
         - Seu Zé - insistia o outro -  tem umas letras aqui. Venha ver.
          O velho finalmente veio, abriu a porta e convidou João a entrar.
         - Vamos entrando, então. Deixe-me ver isso aí.
         João Quirino juntos os cacos e o velho leu:
         - "Ceramica lisboeta".....Hummmm..... Isto veio de Portugal! ..... - murmurava o velho  pegando os cacos e entrando em sua sala para examinar melhor com sua lupa.
         Enquanto isso o menino comprava doces na venda do Modestinho. Tonico Teles, um dos italianos entrou na venda e o moleque o informou do achado.
         - Seu Tonico, meu tio achou uns cacos e trouxe para o "seu" Zé Inácio olhar.
         - Cacos de que, moleque? - indagou o italiano, curioso.
         - "Tá" ali com o Seu Zé Inácio - indicou o moleque retesando os lábios na direção da casa do velho.
          Tonico, curioso como só êle,  não se conteve e dirigiu-se à casa do velho onde foi recebido com desdém depois de inventar uma desculpa para chamar Zé Inácio.
         - O que quer aqui, carcamamo? Estou ocupado, não vê? 
         -Ah, seu José.....deixa disso....é que aqueles documentos....
         -Que documentos? Não tem nada aqui, não. Pode ir embora, homem - disse o velho indicando a porta.
          Mas o italiano continuava ali, imóvel, como que aguardando alguma informação extra que pudesse captar. Seus olhos percorriam a sala e se esgueiravam por entre as portas dos outros cômodos. Num deles viu  João Quirino e aproveitou:
          - Compadre João, o senhor por aqui? - disse ele e já adentrando o cômodo no que foi contido pelo velho.
          - Mas será possível? Ainda não foi embora," ô veio tonto"? - exclamou irritado o cartorário e pegando o italiano pelo braço e levando-o até a porta.
          O italiano saiu contrariado mas foi se postar no quintal da casa vizinha de onde imaginava poder ouvir a conversa dos dois homens. Esgueirou-se por entre alguns pés de mamona, pisou em montes de bosta de animais  e finalmente chegou à janela, de onde conseguiu captar palavras e frases soltas:
          - .....potes, para guardar as jóias e pertences.......alguns.....ouro..... patacas....
          - Hummmmmmmmm........- pensava o italiano - tem coisa nisso aí.
          Ouviu mais um pouco da conversa e se convenceu de que o homem havia achado algo valioso. Saiu dali e dirigiu-se à casa de seu amigo e compadre Tonico Teles.
          - Tonico - chamou ofegante o outro - vem cá. Tenho novidades. Sei não, mas acho que o João Quirino achou um pote de ouro no chiqueiro dele.
          - Pote de ouro no chiqueiro? E como foi parar lá? - perguntou o outro incrédulo.
          - Ma che bestia! - vociferou o outro italiano e contou o resto da história.    
          - Nossa! Um pote de ouro! - exclamou o outro depois de ouvir a história - mas pelo jeito ele achou só um pedaço do pote. né? E se a gente.......
          - Se a gente o quê? - indagou o outro.
          - Bom......quero dizer.......a gente podia.....
          - Caspite! Ele achou só pedaços do pote. Isso mesmo. O ouro deve estar lá então. Que tal se a gente.......
          Nem um nem outro queria dizer, mas ambos estavam babando de vontade de ir até a chácara de João Quirino procurar o suposto ouro do pote. Um olhava para o outro e este desviava o olhar. Finalmente não se contiveram e disseram quase ao mesmo tempo:
          - Vamos para lá!!!
          Gusto Fidelis foi para os fundos da casa, pegou um saco e um enxadão enquanto Tonico Teles ia para sua casa pegar uma lanterna de querosene. Já eram quase seis da tarde e daí a pouco começaria a escurecer. Combinaram que iriam lá com a noite caindo porque não queriam que outras pessoas os vissem nem o próprio João Quirino.  
          Já eram seis e meia da tarde quando os dois italianos se dirigiram à chácara de João Quirino. Um pouco antes da saída da cidade , na Rua Direita, ficava o Bar do Fredão, mas os dois desviaram por uma viela para evitar se encontrarem com algum conhecido.
          -Tonico - disse Gusto, parando de andar e fitando o companheiro - estive pensando. E se o João aparece por lá enquanto estamos procurando o pote? Se acharmos ele vai querer tudo pois afinal está em sua propriedade.
          - Ih, é mesmo - concordou o outro italiano - precisamos dar um jeito de retê-lo aqui na cidade. Mas como?
          - "Peraí", ele deve estar ainda lá no bar do Fredão. E se a gente........
          - E se a gente o quê? - interrompeu o outro.
          - Tava pensando, aquele menino veio com êle, né? O sobrinho dele.
          - Sim? - indagou o outro ansioso para conhecer o resto do plano.
          - A gente volta lá na venda. Deixa uns tostões com o moleque e manda ele comprar pinga para o João Quirino . Do jeito que ele é, vai beber tudo hoje mesmo e volta "cambetiano" para a chácara noite alta. Enquanto isso vamos lá, cavocamos, pegamos o pote e voltamos para cá. Ninguem vai perceber. O que acha da idéia, Tonico?
          - Perfeita! - exclamou o outro esfregando as mãos - tenho aqui duas moedas. Você tem alguma coisa aí? Precisamos dar o dinheiro para o moleque comprar a garrafa de pinga, então.
          Gusto chacoalhou os bolsos da calça, fez um gesto de reprovação com os lábios e informou o outro de que não tinha nenhum dinheiro.
          - Ah, bom eu já sabia - comentou o outro contrariado. Bom, duas moedas deve dar para comprar uma garrafa. Vamos passar na venda do Modestinho, o moleque deve estar lá ainda.
          Fizeram então meia volta, se esgueiraram por algumas vielas e quintais abertos e chegaram à venda. De fato o moleque ainda estava lá comendo doces na porta. Gostava de "bolachão" uma espécie de biscoito que o furgão da Doces Neusa entregava toda semana nas vendas da região.
         Os dois chegaram proximo à porta da venda e chamaram o moleque. Não queriam se aproximar muito para não dar de cara com mais curiosos.
         - Ô moleque vem cá. Toma aqui duas moedas para comprar uma garrafa de pinga. Depois leve-a ao seu tio e diga que foi presente nosso. Mas vá já, hein? - recomendaram em uníssono.
         Nem esperaram resposta e retomaram o caminho da chácara de João Quirino e às vezes olhavam para trás para se certificarem de que não estavam sendo seguidos.
         Na porta da venda o moleque segurava as duas moedas e comia o resto de um bolachão que havia comprado. Olhava para as moedas em sua mão. Duas. Daria para comprar mais alguns bolachões. Não! Os dois italianos pediram para comprar pinga e não bolachão. Ah! Mas aqueles dois tontos..........poderia.........bolachão.........deliciosos....... Sua boca salivava. Nisso entra um freguês e compra cinco bolachões. O menino conta os que restaram na vitrina. Quatro. E se chegar mais alguem e comprar tudo? Hummmmm........bem.......será que se comprar a pinga ainda sobra alguma coisa? 
          - Seu Modestinho - pergunta o moleque - quanto custa uma garrafa de pinga?
          - Moleque, tá louco? Nessa idade e bebendo pinga? Quer virar um cachaceiro que nem o seu tio? - respondeu o vendeiro.
          - Não, seu Modesto.  A pinga é para o meu tio mesmo. O "seu" Gusto que mandou comprar - respondeu o moleque.
          - Ah, bom.  A Miss Caramba custa "destão" (*) e a Valencia custa oito. Qual delas o seu tio quer? Mas espere aí.... O Gusto mandou comprar pinga para o seu tio? E por que? - indagou o vendeiro curioso.
          - Sei não, seu Modesto. Ele disse que era presente. Se eu levar a Valencia quantos bolachões dá para comprar com o troco? - perguntou o moleque.
          - Dois - respondeu o vendeiro.
          - Então levo essa e mais os dois bolachões, seu Modesto. Aqui tem duas moedas de cinco. - e entregou as moedas ao vendeiro que lhe passou a garrafa de pinga e ia embrulhando os bolachões quando foi interrompido:
          - Não precisa embrulhar não, vou comer agora mesmo.
          - Tá doido, moleque? Já comeu tres e vai comer mais dois? Isso faz mal.
          O moleque nem lhe deu ouvidos. Pegou os dois bolachões, sentou-se na calçada e pôs-se a comê-los.
          Nesse meio tempo os dois italianos chegaram à chácara de João Quirino. Procuraram o local do chiqueiro e encontraram a vala ainda aberta. Certificaram-se de que não foram seguidos, acenderam a lanterna  e começaram a cavar revezando-se.
         – Olhe, compadre, foi aqui que ele achou os cacos. O resto do pote deve estar aqui perto. Vamos cavar rápido.
         – Tonico – indagou o outro – será que tem só um pote? E se tiver mais que um?
         – Bem, cavando a gente descobre – e batia o enxadão com força enquanto o outro se encarregava retirar o excesso de terra com uma pá que João Quirino havia largado por ali.
         A noite ia aos poucos se fechando e os dois ali cavando. Á medida que a vala ia se aprofundando os dois compadres se revezavam nas tarefas. Suavam. O fogo da lanterna de querosene ia se esvaindo. Os dois praguejavam. Cavavam já há duas horas e nada de pote de ouro. Só cacos.
         Enquanto isso na cidade, o menino havia entregue a garrafa de pinga a João Quirino e este intrigado com o inesperado presente inquiriu o sobrinho:
         – Presente para mim? Tem coisa, aí! Esses carcamanos estão aprontando alguma coisa. Bom, já que me deram vamos experimentar agora mesmo.
E sorveu um gole na própria garrafa. 
– Bem, agora vamos passar lá no seu Zé Inácio para ver o que ele descobriu sobre aqueles cacos que “tavam” no chiqueiro.
Sorveu mais um gole. O menino o acompanhava nos passos e às vezes passava as mãos na barriga,  que doía. Havia comido cinco bolachões e o efeito estava se fazendo sentir.
– Ai, tio que dor de barriga....
– O que você comeu, Norfo? – indagou o tio.
– Eu? Bem.....nada.....só uns doces que.....– e não conseguiu terminar a frase.
Mal teve tempo de se recostar num muro e começou a vomitar. O tio olhava aquilo com asco. Sabia que o menino era louco por doces. Devia ter comido além da conta e agora mais essa! Já estavam atrasados para voltar à chácara, a noite já havia chegado e ainda precisava passar na casa do cartorário.
Depois de alguns minutos o menino se recompôs e os dois se dirigiram à casa do velho. Entraram. Sobre a mesa da sala alguns livros, algumas anotações e os cacos  dentro de uma bandeja de ferro.
– E então, “seu” José, o que me diz? Será que é mesmo algum pote de ouro? – indagou João Quirino esperando ansioso uma resposta positiva.
– Qual pote, que nada! Isso aqui é apenas parte de algum objeto quebrado que alguém jogou por lá. Com o tempo foi se afundando na terra e no barro. O senhor só os achou porque cavou no local exato onde estavam. Isso aqui não vale nada. Se fosse mesmo de um  pote, de ouro ou não, ele seria mais alto, mas veja aqui – e apontava para os cacos – estes aqui são de algum objeto mais baixo, uma jarra ou uma bandeja talvez.     
– .......hummm......– interrompeu João Quirino, então trouxemos à toa isto para cá, né?
– Sim, assentiu o cartorário. Pesquisei nos meus livros e não achei nada. Isto veio de Portugal com certeza, mas não vale nada. Pode levar os cacos de volta – e entregou-os a João Quirino depois de colocá-los no bornal.
– “Ta bão”, seu Zé, desculpe o incômodo. Mas é que pensei que valesse alguma coisa ou que tivesse um pote de ouro por lá.
– Pote de ouro......bah! – e praticamente empurrrou tio e sobrinho para fora enquanto se despedia dos dois.
Já na rua, João e o sobrinho não tendo mais nada que fazer na cidade resolveram voltar à chácara. Nessa hora uma fina garoa impregnava suas roupas e João sorveu mais um gole da garrafa enquanto o menino se incomodava com o frio que começava a fazer. Até a chácara eram uns cinco quilômetros e João propôs aguardarem no bar do Fredão que a garoa passasse. Foram para lá. Ao passarem em frente à venda do Modestinho, que nesse momento fechava as portas o moleque levantou a cabeça e olhou para a vitrina de doces na esperança de que houvesse sobrado algum bolachão. Nenhum. Frustrou-se. Seguiu o tio pensando que talvez o Fredão também vendesse bolachões em seu bar.  A garoa, nesse momento já havia se transformado numa chuva rala.
Ao entrarem, deram de cara com os curiosos que antes haviam questionado o conteúdo do bornal.
– E então, João? Quanto ouro tinha no pote? – provocou um.
– Quantas patacas? – ironizou outro.
– Hahahahahaaaaha.......– gargalharam em coro enquanto olhavam para João com desdém.
João, sem responder, mas cheio de raiva recostou-se a um canto, abriu a garrafa e tragou mais um gole da pinga. Achou que estava deliciosa. Olhou para o pessoal que ainda gargalhava, consultou o que sobrara na garrafa e decidiu-se: beberia o resto. Afinal, com o frio que fazia precisava mesmo se esquentar um pouco e aquela garrafa que os dois italianos lhe deram viera a calhar. Os dois italianos. Mas porque será que lhe deram uma garrafa de pinga de presente? Ambos tinham fama de sovinas. Tinha coisa, aí, com certeza. Bem, poderia verificar isso num outro dia. O importante é que agora sentia-se em condições de enfrentar os gozadores ali no bar.
Na chácara os dois italianos embaixo da chuva continuavam a cavar. A terra que removiam misturada com a água da chuva havia se transformado num imenso barreiro. Já nem conseguiam cavar direito. Escorregavam. Levantavam-se, brandiam o enxadão e a pá mas parecia que a vala continuava do mesmo jeito. Em alguns pontos só viam a água que empoçava.
– Que horas será que são, compadre? – perguntou Tonico, apoiando-se no cabo do enxadão enquanto Gusto tentava retirar o barro com a pá.
– Acho que umas nove da noite – respondeu o outro.
– Nossa! Já estamos cavando há quase duas horas e nada do tal pote. Sei não, compadre, acho que não tem pote nenhum por aqui. Nem de ouro nem de nada. Vamos é pegar um “baita difrusso” aqui com esse frio e esse barro aqui
– Também acho, compadre, mas aquele porquera do Zé Inácio é que falou que tinha pote de ouro aqui. Eu escutei direitinho.
– Compadre – ponderou o outro – pense bem. Se o Zé Inácio tivesse falado para valer que tinha pote  de ouro, você não acha que o João Quirino é que estaria por aqui cavando em nosso lugar?
–...hummmm.....é verdade, Gusto. Ainda mais com aquele velho muquirana do Zé Inácio também sabendo. No mínimo os dois estariam aqui. Acha que ele não viria aqui com o João? Com certeza que sim!
– Pois é, compadre. Acho melhor largamos isso aqui e voltarmos para a cidade. Aqui não tem merda nenhuma de pote de ouro. Cáspite!
– É. Vamos embora. Largue tudo isso aí, e pronto!
E se foram em direção à cidade.

No bar do Fredão, João Quirino tentava equilibrar-se nas pernas mas sentia que faltava um ponto de apoio. Apontava para os que zombavam dele ali e os ameaçava:
– Vamos.....seus......vamos ver quem é....– e cambaleava. A certa altura caiu no chão e como não conseguia se levantar ficou ali mesmo, sendo motivo de mais chacota.
O menino, a um canto, morto de vergonha e medo, tiritava de frio. Fredão se aproximou e deu-lhe um gole de groselha.
– Tome, moleque. Beba isso, vai te esquentar um pouco.
– Ei, pessoal, venham ver uma coisa – chamou um dos presentes – vejam aquilo ali. Aqueles dois parece que caíram num monte de barro.
E todos se dirigiram à porta do bar. Eram os dois italianos, que frustrados, voltavam da chácara. Completamente encharcados de barro passaram direto e nem sequer se atreveram a olhar para a porta do bar certos que seriam alvo de troça.
– Mas que diabos! Onde esses dois estavam? E olhe lá, um deles tem um enxadão. – observou alguém.
No canto o menino se levantou e também foi à porta observar o que se passava. Viu os dois velhos encharcados e com o enxadão às costas e começou a se lembrar do que ambos disseram antes de lhe dar o dinheiro para a pinga e os doces.
– Seu Fredão, eles mandaram eu comprar pinga para o tio e me deram dinheiro para comprar doce – informou.
– Dinheiro para comprar pinga para o seu tio? Mas que negócio é esse, moleque? – indagou Fredão, já bastante interessado.
– É. Logo depois que meu tio conversou com o “seu” Zé Inácio. Meu tio pensou que os cacos que achou eram de um pote de ouro que “tava” enterrado  lá no chiqueiro.
– Pote de ouro no chiqueiro? – indagou Fredão tentando concluir – mas será possível que esses dois bocós........
– Hahahahahahahahahaha........– gargalharam em uníssono os presentes – quer apostar como os dois foram lá na chácara do homem procurar o tal pote de ouro? Hahahahahaha.....
E o bar todo foi uma gargalhada só. O menino também se empolgou e entrou no clima. João Quirino dormia pesadamente no chão e Fredão vendo que já estava na hora de fechar o bar, determinou:
– Bem, larguem o homem aí. Joguem um “baxero” nele para não morrer de frio. Você  moleque, deite-se ali  até amanhã cedo e se cubra com isto –   e apontou para um sofá velho e rasgado enquanto entregava ao moleque um pedaço de cobertor ensebado.

No outro dia cedo quando Fredão abriu novamente as portas do bar João Quirino acordou, movido pelo barulho. Sentiu que havia se mijado todo durante o sono, levantou-se envergonhado e acordou o menino. Fredão nada lhe falou sobre a peripécia frustrada dos dois italianos.
Ao chegar à chácara João estranhou o tamanho da vala que havia iniciado no dia anterior.
– Mas o que aconteceu aqui? – indagou para si mesmo enquanto olhava para o monte de barro e a desordem total em que estava o local.
– Tio, o Fredão disse que foi o “seu” Gusto e o “seu”Tonico que vieram aqui cavocar para ver se achavam o pote de ouro – falou o menino.
– Pote de ouro? Aqueles dois bocós? Hahahahaha.....eu não acredito.......se encheram de barro pensando que tinha pote de ouro aqui......hahahahahahahaaha
João recostou-se no mourão do chiqueiro e ria a mais não poder. Olhava para o sobrinho e ambos riam. Gargalhavam.
Na cidade, logo que Fredão terminou de abrir o bar e dar um acerto geral na coisas, os costumeiros desocupados começaram a aparecer e o assunto era um só: o pote de ouro que os italianos foram procurar no chiqueiro do João Quirino. Cada um que chegava era informado do fato e as gargalhadas rolavam soltas .
Todos queriam encontrar os dois italianos para caçoar dos mesmos. Em vão. Por duas semanas ninguém os viu na cidade. As casas fechadas. Na venda do Modestinho nem apareceram. Deviam ter mantimentos em estoque pensava o vendeiro. Mas uma hora acaba e eles terão que aparecer.
A história se propagou e João Quirino mandou colocar uma placa na entrada da sua propriedade: “Chácara do pote”.

Brincadeiras felinas


São sete horas da manhã. Pego uma xícara de café, entro em minha sala, sento-me e abro o jornal. De início leio apenas as manchetes para selecionar o que interessa de verdade. Enquanto passo as folhas noto um pequeno vulto na porta. Finjo que não é nada.

O vulto dá um passo e entra na sala. Continuo fingindo nada ver. Noto, de esguelha, que o vulto começa a ficar meio inquieto. A cada folha que viro, o vulto acompanha com os olhos.

Levanto então a cabeça e percebo nêle um olhar de satisfação e prenúncio de alegria.

Pego, então, uma folha de rascunho, corto em quatro, faço bolinhas de papel e finjo atirar uma delas em sua direção. Êle enseja um movimento e estaca, como que dizendo:

- Vamos logo com isso!

Então atiro a primeira bolinha e êle, ou melhor, ela, minha gata Branquinha dispara em direção à bolinha, segura-a com as patas dianteiras e começa a travar uma batalha no chão da sala. Atiro então a segunda e as demais e ela, nessas alturas, parece atacada por uma agitação incontrolável. Pula, pára, rola pelo chão, joga as bolinhas e depois de alguns minutos, exausta, deita-se no chão e olha para mim como a dizer:

-Por hoje chega, amanhã brincamos de novo.