Aqui um trecho especial de "A carne", escrito em 1888, onde o escritor realista Julio Ribeiro relata impressões de sua viagem de trem da Estação da Luz até Santos, passando pelo ABC (na época Santo André ainda era chamada de São Bernardo)
"Da capital a Santos foi que rolei em pleno desconhecido, foi que se me deparou assunto novo de estudo.
Os campos famosos de Piratininga constituem um platêau que coleia suave, em outeiros mansos, emoldurado à direita pelos cabeços longínquos da Serra do Cubatão, à esquerda pelos visos azulados da Cantareira, pelos picos verdoengos do Jaraguá.
De leste a oeste, um pouco ao norte da cidade, rola o Tietê profundo, negro, taciturno, formando um vale extensíssimo, muito largo.
A conformação atual desse vale, a turfa pantanosa que o constitui em grande parte, o alagamento anual que nele se opera, tudo atesta que ele foi em tempo um lago enorme, sinuoso, semeado de ilhas, um mar de água doce, que ia talvez até Moji das Cruzes. A serra da Cantareira e a vertente norte da serra do Cubatão deram batalha aluvial ao mediterrâneo doce, venceram-no, entupiram-no: o vale do Tietê é a conquista.
As correntes de águas perenes conglobaram-se, aunaram-se, cavaram leitos, formaram os rios que hoje retalham a planície.
Vi de relance o casarão que se está fazendo para comemorar independência, ou melhor, para comemorar... por que não dizê-lo ? para comemorar o desarranjo funcional que levou o Senhor D. Pedro de Bragança e apear-se ali, às quatro horas da tarde do dia 7 de setembro de 1822.
Não há ver nestas paragens aflora maravilhosa das nossas zonas do oeste, os perovões, as batalhas enormes, os jequitibás de cinco metros de diâmetro: a vegetação arborescente é enfezada, baixa, quase anã. Não é basta, contínua: forma reboleiras, restingas, capões, ilhas de verdura, no amarelado pardo do campestre interminável.
Esta região é considerada estéril, maninha: nada mais injusto. Verdade é que não vinga aqui o cafeeiro, que a cana é somenos a de Capivari e mesmo a de Santos, que o algodoeiro não se pode comparar com o de Sorocaba; mas, por Deus! nem só café, açúcar e algodão é riqueza.
A vinha medra de modo assombroso: com uma cultura inteligente, com uma poda antecipada, poderia ela produzir em princípios de dezembro, evitando as chuvas de janeiro que lhe águam os bagos, que lhes deturpam os racimos.
Em São Caetano, em terras outrora baldias, de que ninguém fazia caso, há vinhedos formosíssimos plantados por italianos. A vista alegra-se com a simetria das parreiras, o coração rejubila com a idéia de uma prosperidade imensa, geral, em futuro não remoto, por todos os ângulos de nosso... de nossa província eu ia escrevendo estado.
As hortaliças são enormes: um dia destes vi eu uma couve vinda de São Paulo que era um monstro de desenvolvimento: tinha folhas de cinqüenta centímetros de diâmetro menor; media-lhe o caule muito mais de dois metros.
E por que não há de se cuidar do trigo? os antigos cuidaram com sucesso: em São Paulo comeu-se muito pão de trigo da terra. Ninguém ignora o que a agricultura científica tem feito das landes infecundas da Gasconha. Pois os campos de Piratininga não admitem confronto com as landes da Gasconha: são-lhes infinitamente sublimados.
E a indústria pastoril? Que riqueza imensa a se oferecer espontânea.
De São Bernardo em diante a planície muda de aspecto. Os capões, as restingas vão-se convertendo em um matagal basto, contínuo, verde-negro. Aqui e ali, no dorso de uma colina, no cabeço de um outeiro, rubro, semelhante a uma escoriação, serpeia o leito de um caminho.
Na chã que se vai gradualmente alteando destacam-se as gramíneas, moitas de plantas baixas, de folhas escuras, de flores roxas, muito grandes.
De um e de outro lado do trem perpassam, fogem sombras compactas, fortes: são os primeiros topes da serra. Em vários lugares desnuda-se o granito lavado pelo enxurro, arrebatado pelas brocas do mineiro, esfacelado pela marreta do britador.
Em todas as árvores vêem-se parasitas, de flores escarlates, de folhas lustrosas. A máquina, arfando, em carreira vertiginosa, arrastando o tender, arrastando a longa cauda de carros, triunfante, rumorosa, sobe, galga, vence, domina, salva o declive áspero, rola em terreno plano. O ar torna-se mais fino, mais úmido, a luz mais viva, mais mordente.
À esquerda, rápidas, como que levantadas, emergidas subitamente, alteiam-se montanhas, visos, picos, paredões, agruras, despedaçamentos de cordilheira.
À direita, em anfiteatro pelo dorso escalavrado de uma eminência, casebres miseráveis; sobre o rechano uma igrejinha rústica, desgraciosa, malfeita, com três janelas, com dois simulacros de torres,
a picar de branco o azul do céu e o escuro da mata.
É o alto da serra."