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sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Os monjolos


                               
         Carpinteiros, ferreiros  e pedreiros, Dito Mineiro e o compadre João Oliveira eram sempre requisitados pelo povo das redondezas ali no Sul de Minas  para montar monjolos, construir casas e pontes e realizar consertos em geral. Também eram especialistas em construir as chamadas “tiradas de água”, valas  para que a água de algum córrego chegasse até determinado local. Muitas vezes eram desafiados a fazer a água chegar a algum  local que parecia mais alto que o nível do córrego, mas com paciência e obstinação, conseguiam a proeza: a água chegava e passava a servir,  fosse para movimentar um monjolo, um moinho  ou para  uso doméstico.

          Essas habilidades as aprenderam com Giacomo de Lucca, mais conhecido como Jaco Lateiro,  um italiano que era mestre em trabalhar com folhas de lata e madeira e que também tinha  conhecimentos de mecânica  rudimentar e marcenaria.

              Inicialmente os dois compadres aprenderam a colocar cabos em canecas feitas de latas de azeite , depois a fabricar cartolas e tonéis  para vinho. 

           Antes de começarem a trabalhar sozinhos só levavam à frente os trabalhos depois da aprovação do velho mestre italiano. Com o tempo foram se especializando, aprendendo novas técnicas e aos poucos dispensaram as avaliações do velho, que enciumado, sempre punha defeitos nos trabalhos dos dois.

         – Seu Candido, este monjolo não está bom. A madeira é “molto” pesada e a “acqua” cai “presto súbito”.

         – Olhe, seu Jaco, pode ser, mas ele funciona bem. Já bateu quase dois jacás de milho semana passada.

 –  .........

           Os dois compadres haviam nascido em Andradas e anos mais tarde as famílias se mudaram para Campo Místico, mais ao sul de Minas, onde foram morar  na roça com os pais que trabalhavam no sistema de-a-meia para João Frutuoso, uma espécie de coronel local e que também era fazendeiro.

               Os dois, com quinze anos se apaixonaram pelas irmãs Antônia e Jesuina  ambas com quatorze anos e moradoras ali do bairro. Daí a um ano estavam casados com as duas irmãs e morando parede-e-meia numa casa de barro  no bairro dos Machados.   
  
               Com o passar dos anos cada um dos dois se especializou em alguma atividade embora trabalhassem juntos. Dito era melhor como ferreiro e carapina  e João como pedreiro e construtor de monjolos.  Os dois dispunham de instrumentos rudimentares: um prumo já desgastado pelo tempo, duas colheres enferrujadas,  martelos já meio disformes, talhadeiras, formões  e cepilhos meio sem corte.  Essas falhas nos seus instrumentos eram supridas com suas habilidades e conhecimentos.
  
 Para esquadrinhar os alicerces de uma casa utilizavam o método dos antigos egípicios: uma corda com alguns nós em posições exatas esticada a partir de um mourão determinava os cantos da casa e após isso definiam as linhas de contorno.

Quando eram requisitados para construir alguma ponte, inicialmente examinavam o local e definiam os tipos e tamanho da madeira que empregariam. Depois adentravam o mato e procuravam a madeira ideal quanto ao diâmetro e comprimento das toras que poderiam aparar.

Para os monjolos havia necessidade de usar a madeira correta: a peroba ou a caneleira preta. O cocho era aparelhado com machado e depois acertado com formão. 

Para os monjoleiros em geral, a suprema vergonha era fazer um monjolo que não funcionasse. Seriam alvo de chacota por todo o bairro.

Com Dito e João  isso nunca acontecia, pois seus monjolos sempre funcionavam e inclusive eram alvo de cópias de outros monjoleiros.

Mas copiar um monjolo não era garantia de funcionamento pois havia necessidade de estudar a vazão da água, a altura da queda e outros detalhes.


Ficou célebre a polêmica que  Dito e João tiveram com o mestre Jaco Lateiro quando foram requisitados para construir um monjolo para o fazendeiro Zé Espoleta.  Este queria que construíssem em sua propriedade o maior monjolo da região, mas havia pouca água para movimentá-lo. Além disso o local onde corria a água era plano. Jaco Lateiro logo de início disse que seria impossível mas os dois compadres após estudarem o local afirmaram que seria possível sim.

A polêmica despontou. Nos botecos e vendas da região o assunto era um só: o monjolo do Zé Espoleta. Apostas eram feitas, discussões acaloradas aconteciam e Jaco Lateiro zombava dos dois antigos discípulos.

–“Ma che!!!!” Monjolo naquele lugar, nem com a mão de Deus! Impossível!

Apesar disso Zé Espoleta autorizou Dito e João  a construirem o monjolo, com algumas advertências.

– De Borda da Mata até aqui esse terá que ser o maior monjolo . E não me façam passar vergonha! – sentenciou.

– Pode deixar, seu Zé, em dois meses o senhor terá o seu monjolo funcionando. E o senhor se orgulhará de tê-lo em seu sítio – prometeram os dois compadres – E o “seu” Jaco vai ter que morder a língua!


   Os dois compadres estudaram o local, procuraram a madeira certa e posse de todas as informações iniciaram a construção do monjolo de Zé Espoleta. Com a evolução da construção a polêmica se acirrou e Jaco Lateiro já não se ocupava mais de outro assunto. Passava o tempo todo colocando defeitos na obra dos dois compadres e atazanando Zé Espoleta.

– “Signore Giuseppe”, aquele monjolo não vai funcionar. O senhor vai perder tempo e dinheiro..

– “Seu” Jaco, os dois me garantiram que funcionará. E resolvi apostar nisso – respondia Zé Espoleta, já cansado das implicações do velho italiano.

– Bem, o dinheiro é seu e o senhor é quem sabe...

Zé Espoleta dava toda força aos dois compadres monjoleiros até porque descobriu que Lazo Mendes, seu vizinho e desafeto também estava construindo um grande monjolo em sua propriedade. Zé não queria ficar para trás. O seu tinha que ser o maior monjolo da região! E tinha que terminar antes que Lazo Mendes  terminasse o seu.

Um mês depois os dois compadres já haviam providenciado a tirada de água para o funcionamento do monjolo e chamaram Zé Espoleta para observar o teste. Sem ser chamado, Jaco Lateiro também apareceu por ali dando palpites.

– A água não tem força para movimentar o monjolo. Não vai funcionar!

– Êta velho agourento! –  observou Zé Espoleta.

– Tá torcendo para não dar certo – confirmou João Oliveira.
   O teste foi feito, a água correu normalmente e sua força foi testada e aprovada. Zé Espoleta animado, adiantou aos dois compadres metade do que haviam combinado.

À noite, na venda do Julio Veiaco o assunto despontou de novo  e Jaco Lateiro, irritado com as gozações dos amigos, se enfiou numa garrafa de pinga, embebedou-se até as palavras não se articularem mais e teve que ir para casa carregado.

Alguns dias se passaram e os dois compadres já quase terminavam o monjolo quando algo inusitado aconteceu: numa sexta-feira de manhã a tora onde talhavam o monjolo amanheceu totalmente queimada.

Rebuliço no bairro! Por todo canto os comentários corriam soltos.

– Acho que foi o Jaco, aquele carcamano – sentenciava um.

– Qual o quê! Deve ter sido o Lazo Mendes que mandou queimar o monjolo. Aquele pobretão invejoso – opinava outro

–  Sei não, deve ter sido coisa do demo – pensava alguém.

Os dois compadres ao saberem da notícia ficaram inconformados. Estava já o monjolo quase totalmente talhado e acontece uma coisa dessas. Um desastre!

Zé Espoleta, então, ameaçador, sentenciou:

– Vamos descobrir quem foi e esmigalhar a cabeça dele no pilão do novo monjolo. Podem começar a construção de outro – determinou aos dois compadres.

Zé Espoleta foi ao delegado na cidade e deu parte do ocorrido. O delegado João Beiçudo prometeu investigar o caso e no dia seguinte já providenciou a ida de dois soldados ao local. Examinaram a tora queimada, indagaram os moradores das proximidades e voltaram à cidade para relatar a João Beiçudo que nada apuraram, pois não havia pistas e nenhum morador vira coisa alguma.

Enquanto isso Jaco Lateiro enfiou-se em casa e não saiu por três dias. Essa atitude reforçou as suspeitas de que fora ele que queimara a tora.

O delegado, sem saber o que fazer e pressionado por Zé Espoleta resolveu acusar o italiano mas os dois compadres saíram  em sua defesa.

– Olhe João, o Seu Jaco jamais faria uma coisa dessas. Ele anda meio estranho com a gente mas nunca.......

– Tá bom, tá bom, mas se entendam com o Zé Espoleta então.

Jaco Lateiro, magoado, mudou-se do bairro e foi trabalhar para Lazo Mendes. Foi encarregado de supervisionar a construção do monjolo deste.

Os dias se passaram e os dois compadres trabalharam com zelo e esforço. Terminar o monjolo do Zé Espoleta antes que o do Lazo Mendes ficasse pronto era questão de honra. Ainda mais sabendo que o velho mestre Jaco estava à frente da empreitada rival.

Para evitar qualquer problema Zé Espoleta destacou dois empregados para tomarem conta da tora durante a noite. Queria evitar que alguém a roubasse ou a queimasse de novo. Os dois empregados se revezavam, noite um, noite outro.

Dessa vez tudo transcorreu normalmente e depois de duas semanas finalmente o cocho do monjolo estava pronto. Faltava a haste e a montagem.

Zé Espoleta passava os dias apreensivo imaginando que Lazo Mendes  deveria estar preparando alguma coisa para atrapalhar tudo. Mandou um capanga disfarçado ao bairro vizinho espionar a construção do monjolo de Lazo Mendes. O capanga relatou tudo que viu e Zé Espoleta chamou os dois compadres que lhe garantiram terminar o monjolo no prazo.

Zé Espoleta atendeu a sugestão dos dois compadres para que a inauguração ocorresse no dia 19 de março, dia de São José, padroeiro dos carpinteiros e dia santo por ali.

Ao saber da inauguração do concorrente Lazo Mendes chamou Jaco Lateiro de lhe deu um ultimato:

– Seu Jaco, ou o senhor termina meu monjolo antes do Espoleta ou pode pegar a estrada.

– “Signore Lazaro”, fique tranquilo. O monjolo ficará pronto na data – respondeu o velho mestre.

A partir daí Jaco requisitou mais dois empregados, apressou a tirada de água, fez os testes finais e começou a dar os últimos retoques no monjolo. Enorme, comprido  e pesadíssimo, seria um grande desafio se funcionasse. Mas tinha que funcionar! Jaco precisava dar uma lição nos antigos discípulos e mostrar que era melhor que eles. Mas o prazo era reduzido e isso o incomodava.

Era dia 20 de fevereiro e Jaco precisava terminar o monjolo até dia 15 de março  que naquele ano cairia num sábado. Lazo Mendes programou também uma grande festa para o dia e continuava pressionando o velho italiano.

– Veja lá, seu Jaco, não vá me decepcionar – quero dar uma lição naquele gargantão.

– “Lascia stare...” – resmungava o velho enquanto aplicava  golpes de formão na tora de madeira.

Os dias se passavam e os dois sitiantes se vangloriavam de suas próximas realizações. Na venda do Julio Veiaco o assunto era um só: os dois monjolos.
O assunto já ultrapassava os limites dos bairros e chegava à cidade. No bar do Fredão também o assunto girava e as apostas corriam soltas.

– Dez contra um no italiano!

– Que nada! Cinco a um para os dois compadres.

–  Acho que vai dar empate, os dois lados são bons


O capanga de Zé Espoleta relatou ao patrão os preparativos de Lazo Mendes para a inauguração de seu monjolo e Zé Espoleta, decepcionado,  foi ter com os dois compadres que lhe garantiram que no dia combinado tudo estaria pronto. Mesmo perdendo o prazo para o desafeto, o monjolo de Zé Espoleta funcionaria perfeitamente e seria o maior da região. Atenderia o bairro todo.

Vencer  Lazo Mendes na disputa dos monjolos seria a glória para Zé Espoleta. Por isso mandou preparar uma grande festa para o dia. Convidou o prefeito  e alguns sitiantes vizinhos. Chamou também o Monsenhor Brito para benzer o monjolo. O religioso  porém, recusou.

No bairro dos Guatura o monjolo de Lazo Mendes ficou pronto e um dia antes do sábado da inauguração Jaco Lateiro providenciou tudo: testou a força da água; as pancadas do monjolo no pilão e os últimos detalhes.  Tudo estava correto.

Às dez horas da manhã de sábado Lazo Mendes mandou  iniciar a festa. Ao seu sinal  Jaco  Lateiro retirou a trava do monjolo e o cocho começou a se encher de água. Expectativa geral. Todos esperavam a primeira pancada do monjolo para iniciar o foguetório e a festa.

À medida em que o cocho se enchia de água Jaco Lateiro ansioso, esfregava as mãos.

Finalmente o cocho se encheu de água e.......ficou no mesmo lugar, não desceu. Lazo Mendes olhou para o italiano e fez um movimento dos lábios, como que indagasse:

– O que aconteceu?

O velho italiano, inconformado e envergonhado, tentava baixar o cocho manualmente enquanto pedia ajuda divina:

– “Dio”, me ajude! Me ajude!
Em vão! O monjolo permanecia imóvel, a água transbordando pelo cocho.

Lazo Mendes furioso, aproximou-se do monjolo e também tentou descobrir porque o cocho não baixava. Olhava para Jaco Lateiro com ares de reprovação o que deixava o velho mestre ainda mais desconcertado.

Jaco dava marretadas no corpo do monjolo com a intenção de fazer o cocho baixar. Seus auxiliares com enxadas alargavam o rego de água acima do local onde o monjolo fora instalado.  Tentavam,   com isso, aumentar o fluxo de água e fazer o cocho descer. Mas nada dava certo e as pessoas em volta já estavam ficando inquietas com a demora.

          Lazo Mendes dava socos no ar e vociferava contra o monjolo do italiano. Seria uma tremenda vergonha quando o bairro inteiro soubesse e a noticia chegasse ao bar do Fredão na cidade!

          Por fim, desistiram. Lazo Mendes inconformado montou em seu cavalo e desembestou rumo à cidade. Ele mesmo daria a noticia no bar do Fredão. Pelo caminho ia pensando numa desculpa. Talvez dizer que a madeira do monjolo estava bichada e umedeceu demais ou que alguém acima da colina desviou parte da água reduzindo a vazão.

         Jaco Lateiro sentado numa pedra olhava para o monjolo. As lágrimas escorriam pelo rosto vermelho. Segurava o chapéu com uma mão e com a outra tapava o sol acima dos olhos. Seus ajudantes tentavam minimizar a situação mas Jaco estava inconformado. Não tinha explicação para a falha.
     
         Alguns dias depois, apesar dos compadres não terem conseguido cumprir o prazo inicial prometido, o monjolo de Zé Espoleta ficou pronto e funcionou perfeitamente. Dito  e João João foram alvo de congratulações e admiração no local.

        Apesar de toda a alegria se penalizavam com a desventura do mestre Jaco Lateiro, ridicularizado por todos depois da falha  de seu monjolo.

         Após algum tempo chamaram-no para trabalhar na oficina deles lhe dizendo que havia serviços de confecção de canecas e consertos de panelas, barris e outros artefatos de madeira. O velho, até porque precisava ganhar alguma coisa para sobreviver, aceitou e passava os dias sentado num banquinho martelando as latas e a madeira. Muitas vezes os compadres lhe davam serviços fictícios para ele apenas se ocupar.
              
         Um belo dia o velho desapareceu e ninguém mais o viu por ali. Com o tempo correram noticias de que havia ficado louco e que andava pelas estradas chacoalhando a cabeça e balbuciando:

         -“ ...ma ha funzionato nella prova!” (mas funcionou no teste!)

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