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domingo, 10 de junho de 2012

A destala de fumo




 A plantação da roça de fumo se iniciava no mês de outubro com a preparação do canteiro. Geralmente era feito em locais baixos e úmidos e  de preferência perto de alguma mata. No começo de janeiro, com as mudas já prontas era feito o replantio e dois meses depois a primeira carpa. No mês de maio a planta já soltava pendões que tinham de ser tirados para que não crescesse demais . Mais uns quarenta dias e os brotos no vão das folhas também tinham que ser tirados.
Daí em diante as folhas começavam a amadurecer, apresentando-se grossas meio amareladas. Inicia-se então a panha das folhas que eram empilhadas e depois transportadas para a sede onde eram penduradas por cerca de um mês em varões de madeira dentro de paióis ou galpões para secagem.
Depois de secas as folhas eram preparadas para a destala, um ritual sempre esperado pela vizinhança, pois era praticamente quando todos se reuniam para conversas regadas a café, pinga e bolo de fubá.
Na destala propriamente dita cada um pegava um pouco de folhas do monte que ficava no meio da sala e ia tirando os talos manualmente, com canivete ou faca. As folhas destaladas iam sendo colocadas sobre as pernas e quando atingiam uma quantia que começasse a cair eram pegas pelo coxeador que as levava para enrolar no bacamarte, uma espécie de rosca-sem-fim talhada num rolo de madeira e no qual as folhas se transformavam num fio de cerca de um centímetro de diâmetro.
Esse fio era, depois, trançado em grupo de três formando uma corda que era enrolada num rolo de madeira e junto com os demais iam para um galpão onde eram colocados em pé para cura.
Depois de alguns meses o fumo já estava pronto para a venda ou consumo próprio.
Ali em Campo Místico as variedades mais cultivadas eram o Barbosa, o Poço Fundo , o Goiano, o Piranchin e o Descalvado.

Chico Furquim era um dos produtores mais conhecidos no bairro. Ele mesmo não trabalhava em suas roças, sempre contratava pessoas desocupadas, os chamados camaradas. No dia da destala contratava violeiros para animar os locais e vez ou outra mandava vir de Ouro Fino a dupla de cantores  Nhô Firmino e Nhá Zefa muito conhecida na região e grandes animadores.

Naquela noite a destala ia adentrando a madrugada e na cozinha as mulheres não davam conta de fazer café e bolo para o pessoal. Num canto, meio arcada, Chica Mineira dava as ordens para as outras mulheres.
-Vamos, pessoal, esquenta logo essa água. Florinda, mexe mais a massa!
Chica, tida como especialista em cozinha ali no bairro sempre era requisitada e cumpria sua missão com elogios. Nunca era paga em dinheiro, que era escasso por ali, mas com latas de azeite, sabão em pedra ou tigelas de doces.

Nas destalas do bairro uma figura de destaque era o coxeador Mário Boné. Cara avermelhada, mangas arregaçadas, camisa sempre fora das calças, ia determinando o ritmo da destala, ora  ralhando com as crianças que corriam pela sala , ora repreendendo  os relapsos e devolvendo as folhas mal destaladas. 
-Moleques, parem com esse frege! Olha aqui, seu Tranquinha, isso é jeito de destalar? Que serviço porco!! Pode fazer tudo de novo e de roda batida, viu?
Ninguém ousava contestá-lo. Tinha décadas de prática e jeito para comandar a destala e coxear os rolos de fumo.

Na destala alguns apareciam apenas para aproveitar a oportunidade para comer bolo e beber pinga de graça. Outros para flertar com as moças da vizinhança. Notava-se perfeitamente pelas mãos ensebadas pelo fumo quem realmente estava trabalhando e quem só enganava.
­– Seu Chico – reclamava Mario Boné – nunca mais chame esses filhos do Manézinho, pois esse pessoal só vem às destalas para atrapalhar, beber e fazer folia. Agora há pouco, estavam bêbados e brincando de um carregar o outro nas costas. Enquanto isso o monte de fumo ali  no meio esperando......
– Deixe eles, Mário.  O Manézinho é meu compadre e os rapazes gostam de aproveitar para se divertir um pouco.

Num canto da sala, dois italianos, com algumas folhas destaladas nas pernas, comentavam tudo que se passava. Não lhes escapava nada nem ninguém.
– Tonico, valda quella ragazza.....
– Si, Gusto. Che c’è?
– Desde que chegamos ela não destalou uma folha sequer. Só ficou conversando com o filho do Bataginni.
– Quem é ela, Gusto?
– É a filha do João Alemão, aquele da serraria.
– Nossa! Como ela cresceu e virou uma môça. Nem a reconheci, Gusto.
Nisso, Mário Boné se aproximou para pegar mais folhas destaladas e vendo que os dois não tinham aprontado quase nada, vociferou:
– Seus molóides! Ficam especulando o tempo todo e não destalam nada! Que raça, esses italianos!!
– Seu Mário, calma, o senhor anda "molto stanco", precisa descansar, anda trabalhando demais.
– Argh!!! – pigarreou Mário e se afastou vendo se tinha mais sorte com outros destaladores.

A destala prosseguiu e ali pelas duas da manhã o monte de folhas no meio da sala já quase terminado, as mulheres na cozinha já sonolentas, Chico Furquim resolve dar um incentivo extra e proclama.
– Quem destalar a última folha ganha dez merréis!

Correria na sala. Os dois italianos quase pulam sobre o monte. As crianças que corriam se atropelam umas às outras e quase caem sobre o monte. Outros mais afoitos ainda disputam folhas rasgando-as ao meio.
            Nesse tumulto todo uma figura discreta sentada a um canto olha tudo aquilo com desdém e torce o nariz, pensando:
            – Torpes! Idiotas! O homem não disse que premiaria quem destalasse a última folha? Para que essa correria então?

E guardou uma folha sobre a perna direita enquanto os demais se engalfinhavam.

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